domingo, 23 de novembro de 2014

016. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [13]

          em Duas Horas de Leitura (1857) [III]




Apresentei, no post anterior, «o vulto moral» de L. B. [Luís Barbosa e Silva], descrito por Camilo, no capítulo II, da crónica «Peregrinação sobre a Face do Globo» / «Do Porto a Braga» [ver aqui]. O Escritor faz, em seguida, o retrato psicológico de E. B. [Evaristo Basto], de quem era amigo «há oito anos, e o mais antigo de todos» [Branco, 18582: 97; ver Cabral, 1989: 58-59]. Deixarei este E. B. de parte, por não ser de Viana. O último companheiro da «peregrinação» a ser retratado é J. B. [José Barbosa e Silva], irmão de Luís Barbosa e Silva, e cujos dados biográficos tenho vindo a referir, em vários posts deste blogue. Para eles remeto, por isso.
[Todavia, sínteses da sua vida a nível familiar, político e social, a par das suas íntimas relações de amizade com o Escritor, encontram-se também em Cabral, 1989: 51-53, 1984 (I): 33-42, Teles, 2007: 376-377, e Vasconcelos, 1991 e 1999. Além disso, é fundamental conhecer a imensa correspondência que Camilo enviou a José Barbosa e Silva e seus irmãos Luís e Mateus, publicada por Cabral, 1984 (I) e (II), e parte por Barbosa, 1919 e por Teles 2008. Pena é que a correspondência de José Barbosa e Silva para Camilo tenha sido destruída.]



Passemos, então, ao «vulto moral» de José Barbosa e Silva (1828-1865), segundo Camilo, em Duas Horas de Leitura, narrativa «Do Porto a Braga», passeio, recorde-se, realizado no ano de 1856, tinham Camilo e Luís Barbosa e Silva 31 anos de idade e José 28.

«J[osé] B[arbosa e Silva].
LÊSTES VIVER PARA SOFFRER? Se tivestes o tacto de respigar n'um livro, aqui e alli, o coração do author, achal-o-hieis. Não vos quero denunciar aonde, porque a amizade não dá azo a tanto. Surprehendam-no lá, se podem; que eu lh'o diga, não. Vede a physionomia serena deste homem: envejar-lhe-heis a paz intima, o recolhimento ditoso em que parece adormecida aquella alma, no seio da bemaventurança. Não o julgueis assim. Lá dentro vão tempestades como as dos bellos lagos de Italia, que se não bolem sequer agora, á crispação de uma briza, e tem dentro a vaga que logo se levanta com o dorso irriçado de tormentas. Alli não está só o poeta que vive

Morrendo por um nada,
Que desejado afllige, e havido enfada. (*)

Ha mais, ha o peior das chimeras mortas, o veneno d'ellas que fica, depois que o verme da saudade lhes sorveu os succos bons. E d'ahi, aquella immersão em tristeza profunda, d'onde não ha salval-o, sem que a sezão tenha cumprido sua phase. Noite alta, a insomnia trava-lhe da imaginação affogueada, e o visinho do seu quarto, ao amanhecer, escuta os passos monotonos do authomato, que se move, em quanto a alma, desatada do corpo, corre triste fadario. Não sabeis de certo o que é o enojo da vida, sem desejar a morte, porque a zombaria da esperança cava-nos abysmos, e, se nos vê em perigo de resvalar, transforma-nol-os em flores, mas flores com espinhos sempre. Oh! meu Deus! não é melhor ir com os olhos postos nas estrellas, e cahir de chofre em um poço, como o phylosopho grego?! Este morrer a retalhos, para nós que não somos ténias, é sobremaneira indecoroso!
Não cuideis, porém, que J. B. é algum Manfredo de faces cavadas e cabellos hirtos, como elle se pinta nas edições illustradas de L. Byron. Maravilha é vêl-o, no baile, modêlo de obsequiosas finezas ás damas, e esmerando-se em não esquecer os cavalheiros. O sorriso de convenção, o ademane cultivado lá fóra em alguns annos de viagens, obedecem-lhe sempre, e dão-lhe um ar de contentamento que muito deve penhorar os donos da casa; e assim é bom para que não fiquem só penhorados os que se retiram, já que os jornaes não permittem outra coisa.
J. B., officioso por educação, conhece que não póde furtar-se aos obsequios com que a sua ampla roda procura galardoar-lhe o merecimento.
N'esta tarefa, de que Deus me livre pela sua infinita misericordia, consome J. B. muitas horas que precisaria, se a litteratura não entrasse na sua educação simplesmente como ornato. Não obstante, a applicação, a paciencia, e a vontade tenaz, n'outra épocha, fizeram que elle, aos vinte e oito annos, conheça linguas e a litteratura de cada uma, tanto quanto a sua modestia, e algumas vezes a sua indole acanhada, fazem por esconder aos que o não têem acompanhado no seu progressivo desenvolvimento.
Ahi estão os meus companheiros.
Agora, ides de certo pasmar, se eu vos disser que nenhum d'elles é sequer, commendador!»

(*) F. d'Alvares do Oriente. [Nota de C. C. B.]

[Branco, 18582: 97-98]


Além de político do partido liberal (deputado, por Viana do Castelo e adido em Paris, entre outros cargos) José Barbosa e Silva dedicou-se também às letras (poesia, romance e jornalismo). Camilo apoiava e incentivava esta atividade do amigo vianês, promovendo-lhe a publicação, em jornais do Porto e de Lisboa, de poemas, crónicas e, em folhetins, o romance Viver para Sofrer (1855). Dedicado aos irmãos e subintitulado Estudos do Coração, este romance, com benevolente prefácio de Camilo (pp. 5-16), apesar de impresso nunca chegou, porém, a entrar no mercado. Como se sabe, a abastada família Barbosa e Silva e, em particular, o José, eram o pronto socorro a que o Escritor frequentemente recorria, nos seus apertos financeiros ou estados psicológicos de abatimento.
Camilo integrou, depois, o prefácio de Viver para Soffrer, no volume Esboços de Apreciações Litterarias (1865: 39-49).


Oportunamente, dedicarei um post (ou mais) ao Viver para Sofrer – Estudos do Coração. Entretanto, em próximo(s) post(s) continuarei a apresentar referências aos irmãos Barbosa e Silva em Duas Horas de Leitura.





Leituras:
BARBOSA, L. X. 1919: Cem Cartas de Camilo. Lisboa: Imprensa Portugal-Brasil.
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
-----------, 1865: Esboços Esboços de Apreciações Litterarias. Porto: Viuva Moré, Editora.
CABRAL, A., 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os irmãos Barbosa e Silva [I] e com Sebastião de Sousa [II]. Lisboa: Horizonte.
----------- 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)
SILVA, J. B., 1855: Viver para Soffrer. Estudos do Coração. Porto: Typ. de J. J. Gonçalves Basto.
TELES, M. T., 2007: Os Manuscritos Gertrudes. Uma portuense apaixonada por Camilo. Lisboa: Guerra e Paz.
-----------, 2008: Camilo e Ana Plácido – Episódios ignorados da célebre paixão romântica. S/l: Caixotim Edições.
VASCONCELOS, Maria Emília Sena de, 1991: «Os Barbosa e Silva, de Viana, e Camilo». Cadernos Vianenses, Tomo XV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 111-127. Disponível também AQUI.
----------- 1999: Velhos vultos de Viana». Cadernos Vianenses, Tomo XXV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 45-54. Disponível também AQUI.

NB - Nas transcrições e citações foi respeitada a grafia das edições consultadas.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                     [Continuará]

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