terça-feira, 9 de dezembro de 2014

018. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [15]
         em Duas Horas de Leitura (1857) [V]


[Continuação do post anterior]


         Antes de relatar a consulta que os três amigos (J. B, C. C. B. e L. B.) iriam fazer ao célebre «doutor das lombrigas», Camilo penitencia-se, ironicamente, do facto de não se ter informado, em tempo devido, «do nome e sobrenome de um sujeito que vai honorificar a pagina mais imbrincada da minha peregrinação.» E acrescenta, de imediato:

«O meu primeiro cuidado, se eu não fosse um frivolo, logo que me approximei de um homem ao alcance do folhetim scientifico, deveria saber-lhe o nome, a linhagem, as suas manias em criança, e outros muitos adminiculos que vem sempre a pêlo na boa avaliação de um typo distincto.» [Braga, 18582: 109]

Lembra, em seguida, nomes de cientistas importantes pelas descobertas que fizeram, mas, por outro lado, que lhe «arde a cara de vergonha» por não saber «o nome do varão prestante que mata a bicha solitária!» Por isso,

«A coima desta falta só póde descontar-nol-a o esmero que vamos pôr em relembrar as impressões que sentimos — eu e os meus companheiros — nos rapidos instantes que a sua companhia nos deliciou na estalagem real de Villa Nova de Famalicão, onde apeamos no capitulo III.
Os grandes homens perdem, quasi sempre na approximação. Excepções ha, porém; e uma dessas é o illustre mésinheiro. O doutor... (não temos certeza se o é; mas o direito com que lhe outhorgamos ao menos um bacharelato está authorisado pelo arbitrio de similhantes mercês:) o doutor esperava-nos, visto que se lhe annunciou a chegada de uma carroça de victimas da tenia, que vinham de longes climas a consultar o Epydauro de Gondifélos, ou aldêa que o valha.» [Id.: 110]

É ao retrato físico «doutor das lombrigas» que Camilo se entrega. Retrato que lhe permitia adivinhar o do intelectual que tinha à sua frente, pois «a physionomia do doutor era um espelho do espírito. Por ella – acrescenta – via-se quão enrugada e arida por lucubrações antilombrigoides não devia de estar-lhe a alma!» [Id.: 111] Enfim, a sua aparência era de um homem inteiramente dedicado ao estudo e à ciência. Mas o último reparo é para a roupa que o homem usava. Condiria ela com o homem de tal espírito “científico”?...

«A casaca e o collete eram singularidades adscriptas ao talento. O doutor envergava uma casaca por a mesma razão que Rousseau trajava vestidos armenios, e um socialista francez, fautor dos irmãos Moravios, se vestiu de monge cóphta. A natureza talhára ab cetemo para elle a vestia de botões de chifre, até ao sacro, ou o collete de affogadilho até á quarta costella. O genio, porém, sempre innovador, em guerra aberta com a despotica natureza, encadernou-se na casaca ignobil, vulgarisando-se até á planta do regedor de parochia rural, e escrivão substituto do juiz-eleito. Como quer que seja, as mediocridades não podem, sem ridiculisar-se, censurar os desvarios do genio.» [Id.: 113]


E vão começar as consultas. O primeiro a ser examinado foi José Barbosa e Silva [«J. B.»].
                           
«O doutor, outra vez sentado, assumiu o seu ar de prestigio, investiu a realeza do seu merecimento, mediu-nos d'alto a baixo, e exprimiu no sobrecenho a altivez do orador de aldêa que vai dizer quatro prosopopeias a uma chusma de sandeus.
Eu disse a J. B. : — “Senta-te, e consulta o doutor.” Era necessario divertir o spasmo estupido em que todos ficamos.
J. B. sentou-se. Não pude ouvir o relatorio dos seus padecimentos. A sua voz era cava e mysteriosa. Havia alli entre ambos uns visos de caballa, palavras surdas de feitiços, olhares vesgos de coisa ruim.
O doutor ouvia, e o pouco que dizia era accentuado; bamboando solemne a cabeça pyramidal. J. B. tirou os oculos; o doutor procurou a cabeça da tenia na retina, ao que parecia dos seus olhares perscrutadores. N'isto, a um signal negativo do doutor, ergue-se J. B., e diz:
“Não tenho a bicha!]”]
Não poderei descrever-vos o rosto desconsolado do meu amigo, sem tenia!
J. B. queria ter o verme; daria por uma tenia o mais importante dos seus intestinos. A lombriga das cem braças era a sua ultima quimera. Mortas todas as illusões do coração, restava-lhe aquella no abdomen.
Nem essa! nem uma solitaria para companheira no êrmo da vida ao homem que busca dentro em si um outro ego!
O doutor disse, e permaneceu immovel na cadeira, esperando um enfermo mais auspicioso. Devia ser eu!
Com quanto o descrever-me n'esta situação original pertença aos meus galhofeiros amigos, eu vou ter a immodestia de fallar de mim. A sciencia requer estas vaidades, assim como a historia as absolve a Cezar contando as façanhas proprias.
O DOUTOR: Então que sente?
EU: Dyspnéas frequentes : nevroses no apparelho respiratorio; um borborygmo escumoso a partir do esophago: pulsações lancinantes no estomago; beliscadellas ardentes na pelle; e de noite estremecimentos subitos que me despertam...
O DOUTOR (interrompendo-me com um sorriso de intelligencia): isso não são symptoinas physicos; [114] sem symptomas physicos não temos probalidades; a solitaria tem seus symptomas.
EU (mordendo o beiço o mais symptomatica e physicamente que podia para disfarçar uma gargalhada physica.) Além d'isto, sinto uma profunda melancholia, um aborrecimento de tudo, um desleixo por tudo, inactividade para tudo...
O DOUTOR: As probalidades são cincoenta por cento. Ora diga-me: come bem?
EU: Pouco, e sem appetite.
O DOUTOR: Quando se tem a solitaria, come-se bem, e ella ajuda a fazer a digestão. Ora como o senhor não tem symptomas physicos, as probalidades são cincoenta por cento. Deixe lá ver a lingua... Está bom... É preciso fazer certa experiência para termos symptomas physicos. Isto ha-de ser mais devagar.
Disse.
Ergui-me com os cincoenta por cento, e vi que os meus companheiros fungavam a um canto, uma risada, encarando-me com ar de compaixão.
E o doutor, immovel, olhava para a cadeira onde devia sentar-se L. B.
Começavamos todos a sentir que a nossa posição era ridicula. Uma tenia moral fizera graves desmanchos no nosso juizo. O unico dos quatro, superior á zombaria, era E. B. que se não julgava o pabulo d'uma lombriga ideal.
Em holocausto á verdade, declaro que fiz uma plangente figura! Andei vinte e quatro horas, col-[115]leccionando a nomenclatura technica dos meus padecimentos, e tive o descoco de não levar um só symptoma physico, que désse idêa da minha tenia! E pur si muove! A bicha existe!»
[Id.: 113-116]

Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I]. AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II]. AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III]. AQUI.
-----------, 2014c: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [IV],. AQUI.

NB - Nas transcrições e citações foi respeitada a grafia das edições consultadas.

[Continuará]

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