terça-feira, 20 de janeiro de 2015

021. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [18]

         em Duas Horas de Leitura (1857) [VIII]

[Continuação do post anterior]


ERAM seis horas da manhã, quando a parelha, açodada pelo estalido do chicote, sempre prodigo das suas amabilidades á entrada de terras grandes, arrastava aos pulos o côche bambo pelas ruas fragosas de Braga, cognominada “Augusta” por politica dos Cezares, e condecorada com o epitheto de “fiel” no tempo em que o Porto, por força de rima, era ”ladrão.”
A respeito de Braga e Porto o melhor é calarmo-nos.

[Branco, 18582: 131]

De facto, os quatro amigos [recordem-se: Camilo, Evaristo Basto (E. B.) os irmãos vianeses Luís (L. B.) e José (J. B.) Barbosa e Silva] devem ter-se levantado e saído bem cedinho de Famalicão, para às seis da manhã já estarem em Braga.
Apesar da última frase acima transcrita, Camilo sempre nos vai recordando algumas rivalidades, remotas e recentes, que, desde há «nove seculos mais ou menos» terão existido entre as duas cidades.
Braga parece gostar pouco do Porto e vice-versa, assim como Camilo parece gostar pouco dos bracarenses. Dos moradores das ruas por onde passavam, o Escritor dá-nos retratos físicos e morais pouco agradáveis. Segundo ele, os bracarenses são «um povo bem morigerado» - ia meditando ele – porque «adormeceu rezando o terço e os versos de S. Gregório, e acordou para levar ao templo o coração lavado com que se deitou! Aquelle capóte, forrado de baeta, com este calor que faz, é sem dúvida um grande sacco de penitencia debaixo do qual se escondem os cilicios expiatórios, quando vão á missa, e o garrafão do verdasco, quando voltam para casa!» [Id.: 132-3]
E porque os seus companheiros não lhe pareciam então propensos a meditações tão graves, Camilo relata o que um dia passou ao passar na rua onde agora passavam, continuando as suas reflexões (satíricas e irónicas) a propósito:

Deste e daquelle lado, estas boas almas rezavam o terço de meias. Eu passei com o chapeu na cabeça; mas com o espirito cheio de reverencia aos bons costumes d'esta sancta gente. N'isto, d'um e d'outro lado, suspende-se um padre-nosso, e rebenta uma ladainha de apostrophes contra mim, a mais amavel das quaes era “fóra, bebado!” Descobri-me, quando me vi em perigo de levar com um pedaço de escumalha da forja nas costas, e fui abençoando o zelo d'esta sancta irmandade, que ahi está posta de atalaia á religião da humildade e da tolerancia, para que se não diga que a pureza d'ella fugiu d'esta terra, onde ainda ha portuguezes de lei, raça sem mistura d'aquella que fez com as fogueiras o que esta, para mor honra e gloria de Deus, quer fazer com a escumalha. Podesse este espirito de caridade ser contagioso — continuei eu com as minhas seraphicas reflexões — e os homens seriam todos excellentes creaturas, quebrar-se-hiam reciprocamente as caras em defeza da fé, perdoar-se-hiam injurias e affrontamentos que não valem para estes devotos uma palha; por exemplo, fraquezas, que uma refinada etiqueta chama desdouros, lapsos do femeaço, useiro e vezeiro n'elles, isso que tem, ou que faz para a salvação da alma? As raparigas, se as tivessemos, davam-se á caução dos padres, para que elles as retemperassem do sal que resiste ao ranço do vicio; e, se por más artes de Lucifer, Belzebut, Astharoth, Uriel, Asmodeu, ou Diabo, a carne se contaminasse, e o ultimo pequeno désse ares do padre que veio a casa exorcismar os esthericos da mulher, a coisa remediava-se com o terço á noite, missinha d'alva ao outro dia, e uma formal bebedeira ao domingo, em que se fariam as pazes, arranchando o padre com duas duzias de frigideiras. Quam facil não seria reorganisar assim a sociedade que tão afanosos traz os charlatães de elixires fourieristas, blanquistas, e proudhonianos?! Liguêmo-nos todos, se ainda é tempo, pelo terço; perdoêmo-nos uns aos outros mutuamente as velhacadas que nos fizermos; reservemo-nos, porém, o caso exceptuado de quebrarmos a cabeça ao nosso similhante, se elle a não destapar diante dos nossos nichos do Padre Sancto Antonio, e S. Torquato, que nos comem o azeite de meias com as nossas bêrças.
[Id.: 134-5]

E eis que voltamos a encontrar os nossos amigos vianeses, Luís e José Barbosa e Silva. O tripeiro Evaristo Basto, esse, foi «visitar suas primas», despedindo-se «por meia hora», tempo suficiente - digo eu - para as consolar.


E, n'este discorrer, paramos na estalagem dita Estrella do Norte.
[…] L. B. perguntou ao primeiro encapotado onde era o botequim do café-forte. J. B. e eu seguimol'-o com o intuito de espertarmos com o almejado café o espirito de analyse, qual convinha a “touristes” d'um tal ou qual calibre.
Mandaram-nos debaixo d'um renque de arcos, no Campo de Sant'Anna, onde a mão civilisadora, em 1836, salvo erro, collocou o primeiro e unico botequim bracharense. Lembra-me, faz hoje cinco annos, vêr alli no batente d'aquella porta um molho de palha painça pendurado. N'este tempo, o botequim não era exclusivo do animal bipede: o viajeiro podia almoçar e mais o azemel na mesma locanda: o armario da cavaca e de pão pôdre [pão de ló] fornecia o grão e a palha para os dois freguezes economicos. Hoje, não. A botiquineira, instrumento involuntario do epygramma aos seus conterraneos, deixou de accumular os dois generos de consumo, e d’esta vez não vendia palha, pelo menos com cartaz á porta. Em compensação, as suas estantes de legitimo pinho amarello medraram em agua-ardente de medronhos, licor de canella, e laranjas azedas.
L. B. pediu café forte. O adjectivo, proferido com intimativa, deu de nós á botiquineira uma idêa alta. J. B. fallando francez, fez-nos talvez passar pelos contractadores da illuminação a gaz, ou delegados russos que vinham fomentar a revolta. […]
Eu, em quanto o café se preparava atravez dos variados philtros que lhe dão a fortaleza em Braga, fui comprar uma folha de papel para escrever para a terra.
Em cata do papel, tive occasião de entrar na tenda contigua ao botequim, e vi uma moçoila espadauda, escarlate, cachopa de encher o olho desdenhoso do mais enfastiado veterano dos salões. Estive, vai não vai, a pedir-lhe uma conta exacta das suas impressões ao vêr-me; mas abstive-me de sondar os segredos do tecido adiposo que lhe pejava os suburbios do coração. Retirei-me com a mulher entalhada na terceira potencia d'alma — porque sou extremamente espiritualista — e vim sentar-me a escrever a minha carta, em quanto L. B. lia um prospecto do Cosmorama em Braga na noite d'aquelle dia.
“Se viermos hoje ficar a Braga, de volta do Senhor do Monte — disse elle com a mais comica seriedade — temos uma noite cheia.”
— Por que ? — disse J. B.
“Vejam esse programma.”
Lêmos, e notamos, entre outros, dous quadros da exposição, que muito nos deviam deleitar, e instruir sobre dous factos importantissimos, cuja averiguação nos tinha dado muito que scismar. Era o primeiro:

O MAGNIFICO QUADRO
DA PESCA DO SALMÃO!

A pesca do salmão!
Imagina o leitor, não visto na pesca da solha e do safio, o que é a pesca do salmão?!
J. B. tinha visto o Louvre, Versailles, S. Marcos em Veneza, S. Pedro em Roma, o Tunel, o Lago di Como, e declarou com o coração a rebentar de curiosidade e riso, que não fazia ideia alguma da magnifica pesca do salmão! L. B. e eu, que a respeito da pescaria, não vamos além da pescadinha marmota e da tainha, estavamos , como o outro que diz, parvoinhos com a gloria de entrarmos nas nossas terras a contar aos ignorantões que nunca viram nada, a magnifica pesca do salmão!
Não riam um riso tôlo os tôlos que só sabem rir. Eu conheço-os, dos que foram ás duas Exposições, para se exporem aos nossos olhos, na vespera de irem, e depois de voltarem. Pois ninguem dirá que foram. Este, o que trouxe de lá, foi uma casaca comprada em Londres; aquelle veio dizer aos seus amigos que o cavallo de tal lord tinha a clina pintada, e uma malha encarnada no jarrete direito; est'outro d'uma agua-furtada de Pariz namorou uma collareja, e não ultrapassou a decencia platoniana, porque não sabia francez. Todos elles com aquella pose, que lhes vêdes, de homens que viram, se a instrucção pagasse direitos de sahida, crêde-me que passariam na alfandega inviolaveis ao fisco. São contrabando, sim, mas contrabando no senso-commum. Estão ahi postos em altura invejada do vulgo sordido, porque o tendeiro pai, ou o almocreve avô, não podem vir da campa dar-lhes na cara com os tamancos e os calções de belbutina que lhes cá deixaram para memento. É o que os mata a elles, ainda assim, a visão dos tamancos e dos calções! Sandeus, porque não hides ver, e contar á familia o magnifico quadro da pesca do salmão!
Deixal-os: elles não lêem isto, nem lêem nada. Andam ahi consubstanciados nos seus cavallos, e fazem de conta que vieram, porque eram cá precisos; e, medrados ao bafejo da estupida fortuna, fazem da sociedade, que os acata, o seu incessante espolinhadoiro. Meu querido tempo, e meu querido papel!...
Vamos ao outro quadro:

OS COLLEGIAES SAHINDO A PASSEÍO
NA RUA DA CORREDOURA,
NA CIDADE DE TUY.
    
Quanto dariam vossas excellencias, leitores, por verem os collegiaes de Tuy passearem, como qualquer de nós, na rua da Corredoura? A circumstancia de serem de Tuy, e a de passearem na rua da Corredoura, é um facto que, se não palpita, pelo menos escoucinha de interesse! Abençoadas tintas e abençoadas lentes que, por um pataco, nos raptam os olhos com maravilhas que a mais fogosa imaginação não traçaria! Que bem empregado pataco, se eu podesse vêr o expositor, d'après nature, com uma albarda no dorso, e um collegial de Tuy bifurcado nella!
“Venha o café, que tudo isto desafia o vomito” — disse J. B. em quanto eu archivava na minha carteira este documento, que espero não seja o unico das minhas explorações por estes mundos de Christo.
Veio, em fim, o café; e, diga-se a verdade, era forte. […]
[Id.: 136-141]

[Continua]

NB1 – Foi respeitada, nas citações, a grafia da edição consultada.
NB2 - Caricatura da autoria de Francisco Valença (1924). Retrato (gravura em madeira) de Pastor (1874)

[Fragmento da capa do livro, 4.ª ed., 1903]

LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.

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