quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

022. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [19]
          em Duas Horas de Leitura (1857) [IX]


[Continuação do post anterior]


Com se leu no post anterior, os quatro peregrinos que partiram do Porto com Braga (Bom Jesus do Monte) por destino - Camilo, Evaristo Basto e os irmãos Luís e José Barbosa e Silva - encontram-se já em Braga e romancista, a dada altura, foi «comprar uma folha de papel para escrever para a terra.» Daí que,

ANTES de entrarmos no correio, paramos, em frente do portão, enlevados n'um cartaz, lavrado em lettra cursiva de bom tamanho e aprimorada fórma. Lêmol-o, e L[uís] B[arbosa e Silva], a meu pedido, copiou-o textualmente.
O leitor erudito, d'oculos e pitada nos dedos engatilhados, queria antes que lhe déssemos a copia de alguma inscripção romana. Que me importa a mim o que os romanos escreveram?! Digam-se e escrevam-se cousas que prestem alguma utilidade á gente. O que passou passou, e nós vamos passando.
Do saber ler ha um só partido que tirar: aligeirar o tempo agradavelmente. O que por ahi se chama instrucção, erudição, sabedoria, sciencia, é a mais ôcca das vaidades humanas.
O homem que morre, dizendo: “li muito” é um suicida, um nescio que se desherda dos prazeres da vida, um celibatario de todas as patuscadas humanas, que não serviu, sequer, para entreter senhoras n'uma sala.
Eu estou curado da febre intermitente do estudo, desde que a minha boa directora domestica, economica, gastronomica, e até espiritual, me disse que eu escrevia muita onzenice que não valia nada “Que importa saber o que disseram esses homens do tempo do Bofelhas?!” pergunta ella, e tem razão. “Se a gente podesse saber — accrescenta — o que ha-de vir, então valia a pena estudar; mas saber o que passou é não ter em que empregar o tempo!”
Bem haja ella que me revirou o sestro das onzenices por melhor caminho. [Branco, 18582: 143-144]

A «boa directora domestica, economica, gastronomica, e até espiritual» era, muito provavelmente, Isabel Cândida Vaz Mourão. Também, com toda a certeza, a destinatária da carta que o Escritor tinha ido depositar nos correios. «Freira do Convento de S. Bento da Ave-Maria, do Porto, […] manteve com Camilo uma prolongada relação amorosa.» [Cabral, 1989: 427] Esta relação terá começado em 1850 e ter-se-á mantido ao longo de vários anos. «Por volta de 1854, quando o romancista mandou vir a filha de Vila Real para a sua companhia, Isabel Cândida conheceu a menina, Bernardina Amélia [filha de Patrícia Emília de Barros, uma das primeiras amantes de Camilo [cf. Cabral, 1989: 57-58], passando pouco depois a cuidar da sua educação. Educação de que continuou a cuidar e a suportar até 1865, ano em que, sob o patrocínio desta «senhora rica e culta», Bernardina Amélia casou com o capitalista António Francisco de Carvalho. Isto, mesmo depois de, sete anos antes, Camilo ter-se desligado de Isabel Cândida, para se entregar de corpo e alma a Ana Plácido. [Id.: 428]
Recorde-se que a excursão dos quatro amigos se realizou na primavera/verão de 1856 e, nessa altura, a ainda amante e protetora de Bernardina Amélia era a freira do Convento de S. Bento da Ave-Maria. Hei-de voltar a falar, em posts futuros, destas relações, a propósito de cartas de Camilo para os irmãos Barbosa e Silva, e sobretudo da morada do escritor, durante cerca de dois meses, em Viana, no ano de 1857.
Voltemos, então, ao relato/crónica do passeio «Do Porto a Braga».

[Camilo - Desenho de Júlio Pomar para 1.ª edição d’O Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro, editado em 1956. A imagem encontra-se no Boletim Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 4 (VII Série), outubro de 1991, dedicado a Camilo: o Homem e o Artista.]

O resto do cap. [VIII], Camilo dedica-o a pôr em confronto a «civilização», isto é, os comportamentos socioculturais entre os habitantes de Braga e Porto. Nem uns nem outros ficam lá muito bem no retrato que deles faz o Escritor. O leitor (re)encontrará um capítulo cheio de graça e humor, resultado do recurso à ironia e por vezes ao sarcasmo. A propósito, permito-me remeter para o post «“A excellencia de carnaval” (1856)», que publiquei no meu blogue Cortesia Linguística, com trechos retirados precisamente deste cap. de «Do Porto a Braga».

Mas qual foi, então, o cartaz que tanto enlevo causou em Camilo e que, segundo ele, «revê a actualidade, e significa alguma cousa nos tempos que correm»? Ei-lo:

“Peira, Dentista e Cirurgião.
“Põe toda a sorte de dentes artificiaes. Limpa
“os dentes. Extrae-os com a maior Destreza, e
“raizes. Firma os que estão abalados cortando-os
“arralando-os e pondo-os em boa direcção. Tira-
“Ihes a dôr, chumba-os. Tira o máo cheiro da
“bocca. Tira verrugas, cravos e calos. Tira a bicha
“solitária.
“Residente á onze annos na cidade de Braga e
“ao presente na Hospedaria do snr. Fanqueira no
“Campo de Sanct’Anna n.º....” [Id.: 144]

E o Escritor comenta, de seguida:

Eis-aqui outro Herodes da bicha solitaria! Convidei os meus amigos a procural-o em casa do senhor Fanqueira. Eu queria desmentir com este doutor em dentes o outro doutor lá de cima, e provar que M. Peira, vindo naturalmente de Paris para Braga, disputa a Gondifélos a efficacia da mézinha. Os meus amigos não annuiram. Algum dente que ainda me resta, como sentinella perdida em arraial onde se deu grande batalha, queria eu entregal-o a Mr. Peira, para que elle m'o firmasse, cortando-o; processo novo de certo, mas facil para quem extrahe um dente com a maior destreza c raizes; o que eu não sei é se elle tambem extrahe raizes com a maior destreza, e dentes. Recommendo, porém, Mr. Peira, não só a quem tiver verrugas, cravos, e callos, mas tambem á authoridade administrativa e aos vigias da camara, se lá os ha. Um cartaz destes deve considerar-se entulho, e o cirurgião que tira cravos é melhor para os trazer que para os tirar. [Id.: 145-146]

[Continuará]

NB1 – Foi respeitada, nas citações, a grafia da edição consultada.
NB2 – O retrato a meio corpo do Escritor foi colhido em Google+ / Imagens / Camilo Castelo Branco.

LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
CABRAL, A., 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.
RODRIGUES, D. F., 2013: «”A excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
-----------, 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VIII], AQUI.

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